terça-feira, 16 de outubro de 2012


OUTROS JORNALISMOS

   O livro de que vos falo é de Gabriel García Márquez, nome incontornável da literatura e, nem todos o saberão, do jornalismo.

   "Relato de um Náufrago" foi publicado originalmente no diário "El Espectador" de Bogotá, Colômbia, sob a forma de folhetins, decorria o ano de 1955.

   Comoveu toda uma população e mexeu com poderes estabelecidos, ao fim e ao cabo também uma das  finalidades desta profissão.


   Imagine-se agora (estamos em 1955) um contratorpedeiro da marinha colombiana, o qual, a meio caminho entre Mobile, Alabama, e Cartagena, revolvido pela força do mar e sobretudo pelas precárias condições de navegação vomita borda fora cinco marinheiros. Concentremo-nos na imagem de uma balsa boiando na volúpia do mar e de um tal Luis Alejandro Velasco a alcançá-la; os restantes quatro, como que por acidente do destino, resistem pouco mais de 10 minutos.

   Dez dias de provação, a meio caminho entre a sanidade e a loucura, entre o topos da sobrevivência e o desejo de morte. A estória deste náufrago é-nos superiormente contada; o tropel de sensações relatadas, que quase se poderiam dizer entre o real e o inverosímil, remetem-nos para uma tensão entre a carne e os mitos, para uma epicidade que é lapidarmente desconstruída numa simples frase de Luis Alejandro Velasco:  - O meu heroísmo consistiu em não me deixar morrer… é um herói acidental, tragicómico, se quisermos; a linha ténue que nele se desenha entre a idealização da morte e as propriedades alucinogéneas de uma terra, sempre tão perto, sempre tão irrevogavelmente irreal, abre uma janela para a tematização do homem face à natureza.

   Há depois o lado sócio-político, a estreita correlação entre o relato do naufrágio e as repercussões decorrentes do facto de nele terem sido denunciadas as contradições de uma “carga mal estivada”, de material de contrafacção a bordo de um vaso de guerra.

   Luis Alejandro Velasco, inicialmente guindado ao estatuto de herói nacional, adulado pelos notáveis, vê-se depois “arrumado na gaveta”, sendo-lhe cerceada qualquer possibilidade de carreira na Marinha. Também García Márquez, em consequência da publicação da estória no diário “El Espectador”, se vê forçado ao exílio.

   Gabi presenteia-nos com uma cosmovisão, com um olhar sobre o mundo, um "tomar partido por", nem panfletário, nem instrumental, mas decididamente inscrito na ordem da realidade.

                                                                                                                                        A.M.P, 2012


                                                                                                                                      

    
 

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